O "inginheiro"
Na entrevista de José Sócrates à RTP, na noite de quarta--feira, metade do tempo foi consumido com a discussão do importantíssimo problema da licenciatura do primeiro-ministro e a outra metade com todas as outras insignificantes questões relacionadas com a situação do país.A licenciatura de Sócrates foi esmiuçada ao pormenor, objecto de mil perguntas – desde as datas do lançamento das notas nas pautas aos nomes dos professores desta e daquela cadeira –, enquanto sobre os impostos se passou como gato por brasas, sobre a reforma da Administração Pública pouco tempo houve para falar, sobre a reforma da Saúde idem, sobre a União Europeia quase não se falou, sobre a Ota não deu para aprofundar nada e o TGV nem foi referido.
Significa isto uma crítica aos jornalistas que entrevistaram o chefe do Governo?
Não – significa uma crítica ao estado da opinião pública.
Se os entrevistadores não tivessem feito todas aquelas perguntas, se não tivessem colocado todas as questões que encheram as páginas dos jornais nas últimas semanas, se não tivessem gasto metade do tempo com aquele assunto, seriam acusados de subserviência, de complacência, de cumplicidade com o poder.
Os jornalistas fizeram, portanto, o que as circunstâncias exigiam deles.
E, no entanto, objectivamente, prestaram um mau serviço ao país e à informação.
Porque gastaram metade do tempo de uma entrevista com o primeiro-ministro a tratar de uma questão que não interessa nada.
Que não tem a menor importância.
Que não conduz a parte nenhuma.
Que não tem dignidade.
Que só deseduca – porque contribui para alimentar a intriga, a pequenez de ideias, a mesquinhez de espírito, os impulsos negativos.
Será que ainda não conseguimos perceber que o país está numa encruzilhada, que corre contra o tempo, que precisa de levar por diante reformas profundas – e que elas só podem ser postas em prática se houver estabilidade e um Governo forte?
Ainda não percebemos que não é o momento de brincar aos governos – e que fazê-lo significa brincar com o fogo?
Quanto à oposição, em lugar de exultar com este tipo de episódios (ou tentar até tirar partido deles), deveria, pelo contrário, estar calada.
Marques Mendes teria tudo a ganhar se não tivesse falado.
Se tivesse dito: «Não me envolvo neste assunto, porque não confundo a luta política com questões pessoais».
Marcaria pontos e acumularia capital político.
Até porque hoje a vítima é Sócrates – mas amanhã é outro qualquer.
Casos como este atingem a política e os políticos no seu conjunto.
Veja-se o que se passou com Cavaco – a quem os sucessivos ‘escândalos’ acabaram por minar a eficácia.
É isso o que queremos agora?
Queremos o regresso da instabilidade política?
Queremos um poder fraco, coxo e sem autoridade?
Queremos viver num país ou num circo?
Um general romano que combateu na Lusitânia enviou para Roma uma informação que se tornaria célebre: «Este povo não se governa nem se deixa governar».
Não nos governamos nem nos deixamos governar.
Sempre que temos uma situação de alguma estabilidade sentimos a atracção do abismo.
Por essas e por outras é que de vez em quando, numa esquina da História, aparece um Salazar – que nos obriga a deixarmo-nos governar... à força.